segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Carta a Valentine

VII

Há quanto tempo... Até que enfim chegou sua tão esperada carta! Aconteceu tanta coisa, desde que te pedi que me escrevesses, que temo ser demasiadamente chato ao descrever-te tudo... e digo “tudo” porque tu és o único amigo com quem tenho a completa liberdade de revelar minha vida, meus segredos, meus temores... como a um Diário. Eu, em Leipzig, não tenho outra coisa a fazer a não ser me entediar... Os dias aqui seguem sempre tristes e vazios... tal como tudo que escrevo... e, por enquanto, as coisas que me têm inspirado algum alento aqui são os Saraus [em que as pessoas apreciam algo digno dos mais fervorosos aplausos, mas... que, infelizmente, mal fazem idéia do que seja] e a esperança nutrida pelo amor e o otimismo de tua saudosa irmã. Então... meu Diário... como posso começar a te descrever meus tediosos dias? Tenho tanta coisa para escrever que certamente daria uma Bíblia inteira! Pois bem, comecemos pelo Gênesis... assim teremos coragem e disposição até, finalmente, chegarmos ao Apocalipse – um sinônimo adequado que os tristes têm para um fim homérico e dantesco. Reencontrei Hécate, sim... e vejo que as notícias correm pelas estradas do meu ilustre País... Hécate havia ido ao Sarau e lá declamou um maravilhoso poema de Byron, a saber, Beppo... e tão maravilhosamente declamou o tal poema que o público, extasiado, manteve-se, por alguns momentos, em absoluto silêncio... como se visse a própria imagem do Autor à sua frente, até explodir em uma salva de palmas. Hécate é deveras uma criatura fenomenal... mas, ontem, durante a sua apresentação no Sarau, eu não a aplaudi... até porque estava completamente envolto por idéias sem fundamento... aflorava-me à cabeça várias coisas das quais nem uma se aproveitava... de modo que via a nossa amável Hécate declamar, mas não ouvia o som que lhe saía da boca; e apenas soube que era Byron o motivo daquela explosão final, porque no início ouvira dizer que seria Beppo o poema que ela haveria de recitar. Ao fim do Sarau, ela ao longe me saudou e se aproximou a fim de perguntar a minha opinião sobre seu recital.... fiquei extremamente constrangido e lhe contei a verdade: disse-lhe que não ouvi palavra alguma, mas que seu recital causou entusiasmo em pessoas honradas no que diz respeito às Artes no recinto e que, por isso, julgava ser bom o que ela nos apresentou aquele dia. Aquela semana, eu havia passado por muitas aflições na alma – o que ocasionou este tipo incomum de distração; mas... surpreendentemente, Aglaia, uma exímia soprano, que me conhecera num Teatro há algum tempo, findou aquela minha vergonhosa situação em um único... abraço. Vê só, amigo... este mero gesto, aparentemente gentil e cortês, foi o cabo de uma angústia profunda e contínua! Céus! – pensei – Que milagre extraordinário pode efetuar em nós um simples cumprimento! E desde então não paro de pensar nisto... Não digo que estou apaixonado, mas encabulado... porque este modo de expressar sua admiração deu a entender que éramos amigos íntimos... de fato, Aglaia é perfeita... é uma mulher por quem eu poderia facilmente morrer de amores... entretanto, a sua magnífica beleza cedeu aos encantos de sua alma... e já nem sei se devo procurá-la; porque receio que as minhas freqüentes angústias e este súbito encanto que nutro por ela seja fruto da falta que Lohraine me faz. Eu devo, afinal, esquecer isto tudo... em breve estarei longe daqui e sei que nossos caminhos seguirão destinos diferentes. Em contrapartida, sei que, enquanto este dia não vier, ainda nos encontraremos... afinal de contas, a cidade é pequena e, embora eu seja um sujeito misantropo, as pessoas sabem exatamente onde me encontrar. Ai, o Amor! Queres realmente que eu te diga alguma coisa sobre isto? Pois bem, meu caro... O Amor é algo abstrato, é algo que não se tem uma explicação exata, porque, assim como nós, a humanidade inteira, ainda que se ponha de acordo em alguns pontos, diverge [e muito!] sobre este assunto. Há três tipos de Amor [Ágape, Filos e Eros] e, pelo que vejo, tu pensas que, por ser Amor, estes três são iguais... há, sim, uma semelhança, mas não significa que sejam idênticos... em tua última carta mencionaste as palavras de Cristo em que ele discursa sobre o Amor [Ágape], que nada tem a ver com Eros... Sim, isto tudo está dentro de um único fundamento... já que o Apóstolo maior diz que devemos amar as mulheres como Cristo ama a sua Igreja, ou seja, dando a própria vida por ela; contudo, este Amor que se deve ter por uma criatura, não se deve igualar, tampouco sobrepujar ao que se tem pelo próprio Criador... nem ainda se deve perverter por ser ele mais “baixo”; pois, o mesmo Apóstolo que nos escreve esta máxima nos admoesta para o fato de “respeitar” e não “desejar” ou, para ser mais direto, “procurar” o bem enganoso que as mulheres proporcionam ao leito... Amor é respeito, amigo! Eis aí a causa substancial deste nosso embate amigável... O nome certo para este tipo de Amor que queres defender é, portanto, Luxúria. E por falar em luxúria, há uma rapariga que trabalha aqui próximo na casa dos Hofmann que de vez em quando me perturba com seus olhares dissimulados; sua reputação é questionável, mas os Hofmann mal sabem que víbora se instalou em seu requintado lar. Ela se chama Nadja; dizem as más línguas que ela sai à noite com os mais diversos homens e de dia faz pose de boa-moça... Ela anda a me perseguir e, com toda aquela voluptuosidade típica de mulheres de sua estirpe, tem gerado em mim uma inquietação, uma coisa... que me faz perder o sono... mas, não é Amor, asseguro-te... porque se assim fosse sentiria os sintomas evidentes de alguém cujo coração está queimando de amores, sentiria minhas mãos suarem e a minha alma se agitar a cada palavra sua... De qualquer forma, esta estranha vontade de possuí-la é o que tem diferenciado minha concepção de Amor [respeito] e Luxúria [desejo]. Agradeço-te pelo belo soneto que me enviaste... embora eu não o aprecie por ser parnasiano, não posso questionar a genialidade do Vate que o compôs. Podes crer que a nossa amizade não se deteriorará com os choques constantes destas nossas ínfimas divergências... como também no fato de que este nosso possível encontro não há de afetar minha vida profissional... em nada, absolutamente. Até mais ver, caro amigo... quando souber mais notícias de Hécate, entro em contato. Ela não se esquece de ti.

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